segunda-feira, 9 de julho de 2007

Quebrando a cabeça

Faz dois meses que chegou de Córrego Danta, um povoado no qual moram 500 pessoas. O impacto da capital foi como pular numa piscina de 100 m de comprimento e 0,5 m de fundura. Ela tem 1,70 m, mas espera se acostumar.

Na casa da tia foi se hospedar enquanto as irmãs não chegam para começar a faculdade. Nem pensa nesta possibilidade, detesta estudar. Adora mesmo é apostar corridas com os cavalos da fazenda, com os peixes e jogar queimada usando bolas de meia gigantes. Então, foi trabalhar no restaurante da vizinha Merla Prantini. Uma italiana que jura por todas as divindades, santos e espíritos –que é brasileira.

- Márcia Beatriz, vai buscar a encomenda dos miúdos de porco, farinha e azeite lá no Mercado Central.

- Onde é isso Dona Merla?

- Segue a avenida Afonso Pena do lado da Igreja São José e pega a avenida Amazonas que não tem erro.

- Tá pago?

- E eu fui alguma vez caloteira menina!

Saiu da rua 28 de Setembro na esperança de voltar 28 de março, já que o Mercado não é assim tão longe. Subiu até a Pompéia e pegou o 1702.

- Seu cobrador, me avisa quando chegarmos na Afonso Pena, preciso descer lá.

No primeiro ponto desembarcada viu um prédio espacial a seu lado e um outro primordial do lado oposto. Não tinha nenhuma placa, mas concluiu que devia ser a Igreja, posto que se ouvia lá de dentro uma música celestial. Atravessada a enorme extensão de terra asfaltada dedicada somente aos carros e ônibus seguiu na artéria até uma veia que parecia levá-la ao coração. O tio lhe explicara que avenida é uma rua de chão cinza com um corte no meio, onde os carros transitam uns pra outros pra cá. “- É isso!”

Aquilo era um deserto povoado de cores e seres irreais, estava alucinada no meio do Kalahari por falta de água e comida há 80 idas e vindas do sol. Então subiu a duna do paraíso vislumbrando antecipadamente seu oásis. De fato, eram representantes legítimas do oásis aquelas florzinhas miúdas de multi-cheiros, contudo...

- Onde jaz o Mercado Central?

As palmeiras imperiais estavam na verdade no cume ornamental da Avenida João Pinheiro e o canto celestial vinha do Conservatório de Música. Algumas pessoas rodavam feito perus desatinados em torno do espaço verde, como se adorassem o último reduto de ar puro e esperança da selva.

- O senhor pode me informar onde jaz o Mercado Central? Era um rapazinho de 15 anos, lindo como Adônis, portanto, boneco excessivamente belo e delicado para suportar brinquedo. Permaneceu estacado imóvel e silencioso consumindo instantes da agonia de Márcia Beatriz. Pasmando na palavra “jaz”...

- Ah! É só você continuar andando aqui pela praça e pegar a avenida à direita. Não tem erro.

- Mui-to o-brigada. Respondeu esforçando-se novamente por reproduzir a linguagem engomada que a patroa exigia. Se queria aprender melhor ir treinando em todas as conversas.

O garoto retomou seu curso piãoneiro, abandonando-a ao próprio raciocínio.

- Com mil Uais! Dirêta minha ô dire-ita deie?

Ora bolas, quem falaria usando um referencial alheio? Só vira tamanha renúncia no dia em que Padre Pôncio, por acidente, acendeu uma vela ao contrário quando chegou Zulmira no altar dizem que, possuída pelo diabo. Queimou os dedos ao segurar a base e não pôde conter um: “- Aí! Com mil diabos!”. Alegria despertou com sua esperteza épica, que um anjo viu reacender-se em seu olhar. De fato, era a OUTRA avenida.

E desceu desceu desceu... Acreditou que a direita estaria novamente sua perdição e foi para a esquerda, evitando também a avenida. Finalmente, levantou o rosto ao céu em súplica e viu uma placa enorme com a única palavra que leria em sua vida: CENTRO. “- Se o Mercado é Centr-al! Se a avenida Am... Am... Amazonas está nesta direção e seu estou andando numa rua paralela, devo entrar numa que vá reto pra ela”. A lógica nos engana. Ruas paralelas e perpendiculares umas às outras são o sonho das cidades planejadas tal qual Belo Horizonte.

Respirou tão leve que parecia uma rolinha gorda no verão. Em mais dos inúmeros cruzamentos com que se deparara deu o derradeiro suspiro defronte a Cinecitá, na rua dos Aimorés. Sentada no parapeito, bem no cantinho da entrada do reduto alugador de imaginação humana, desaguou o pranto devastador. Aturdidos pelos soluços que pareciam vir das profundezas de uma mina de ouro emudeceram atendentes e clientes.

- Ei moça, o que há com você?

- Estou completamente perdida neste deserto horroroso dos livros da vovó preta que chamam de cidade e ainda por cima de BELO HORIZONTE. Respondeu i-me-dia-ta-mente sem hesitar sobre uma sílaba que fosse.

- Não se aflija por mais nenhum momento. O super Lauro vai levar você onde quiser. Só espere um pouco. Vou levar estas fitas na casa de uma cliente e passo aqui pra te buscar.

PÁRA TUDO, PÁRA TUDO! Alguém resolve ajudar prontamente alguém? Isso não está acontecendo!

- Não num espero não moço Lauro, vô com cê. Recaída no mineirês da roça (?).

- Está bem, não tem problema. Encerrei meu horário de trabalho.Como você se chama?

- As pessoa-s me chama-m de Márcia Beatriz.

- Que nome encantador.

- Minha tia diz que é brega, coisa de novela mexicana.

- Não dê ouvidos a ela, os nomes duplos de novelas mexicanas não são tão bem casados como o seu.

- Ã?

- Não combinam tão bem.

Caminharam mais uns 10 metros.

- Ué, cadê o teto da casa?

- Desculpe, não é casa, é apartamento.

- Apartamento... Movendo o rosto para o alto.

- O povo mora nisso aí? Pensei que era que nem o sino da Igreja, só de enfeite...

- Vamos subir de elevador porque ela mora no 17° andar.

- Tá, t...Tá.

No elevador, que quando desce devia denominar-se abaixador:

- Má que trem é esse que parece dançá forré in vez de forró sentano e abaixano num braseiro?!

Moço Lauro esboçou um sorriso cheio de dentes fortes, brancos e sem cáries expressando o deleite imenso de ouvir a antecedente falação. Gargalharia se o elevador-abaixador não tivesse estacionado de sua fúria incandescente no interior de um cano da terra.

- Não sei Márcia Beatriz, parece que tem um Homem nu lá em cima porque o elevador não sabe pra onde ir... Agora. Parou. Vou apertar o botão de emergência.

Foi acabar de executar essa tarefa e Márcia Beatriz atirou-se a seus pés desesperada e dilatou as pupilas ao máximo e ardeu agarrando-o exaltada.

- Vamo ficá preso aqui?

- Acho que sim, só um pouquinho, até o técnico chegar. Tentou consolá-la.

E pensou baixinho: “- Por que uma coisa que tem meia chance em 1 milhão tem que acontecer justo comigo!” Márcia Beatriz começou a suar, depois a andar de lá pra cá de cá pra lá, em todas as direções e sentidos, depois a suar frio, depois a suar quente, e após isto a descabelar as tranças negras, e após isto apertou Lauro, de apertar Lauro...

- Socorr! Socorr-o!!! Ahahahahahahahahahahah, um fio de Deus me tira daqui!

E apertou mais (e gritou mais) e apertou mais (e gritou mais), até que se rasgou e rasgou o moço e obviamente enlouqueceu. Descobriu mais tarde, muito mais tarde que tinha claustrofobia, repetindo para decorar, claus-tro-fo-bia.

Ao cabo de 3600 infindáveis segundos a vizinhança em peso de desocupados e recém descansados recebia-os contentes de seu retorno ao mundo. Lauro emitiu um “Graças a Deus” passando a mão na testa suarenta que mais parecia um “Graças a todos os minutos de orgasmos inexistentes que passei aqui com esta garota”. Exausto, fez questão de carregá-la desmaiada até a saída, descendo pelas escadas rodopiantes como o povo na praça da Liberdade. Antes entregou as fitas, claro. Já estava de saco cheio então comprou um copinho de água mineral pra jogar na cara dela. Acordada a moça, convidou-a para sentar na lanchonete, tomar um sorvete e esquecer toda a confusão do dia. Márcia Beatriz desafogou integralmente sua mágoa naquela taça de sorvete de creme com baunilha e calda de chocolate crocante.

Entreolharam-se várias vezes, num surto doce de simpatia inesperada, perdendo-se em suspiros, sorrisos e gestos orquestrados, entregando-se um ao outro em intimidade irritantemente simples. Ele a colocou em seu fusquinha preto e branco e deixaram-se conduzir até o Mercado Central. O fusquinha logo se agarrou a saveiro e afastou-se do monza.

- Onde você mora? Dessa vez foi ela que esboçou um sorriso de prazer cheio de dentes fortes, brancos e dois do fundo com cáries recentes provocadas pelos desgastes urbanos apesar de toneladas do doce de leite ingerido na infância. Balançou a cabeça simultânea a abertura cordial da boca, seqüestrou a caneta no bolso da camisa de Lauro e na palma de sua mão escreveu.

- Pode ligar pra esse número. Fechando a palma da mão dele com a sua.

- Não fica chateada, muita gente que nasceu aqui ou que mora há anos fica perdida nas ruas diariamente.

E foi-se.

Parada em frente ao MERCADO CENTRAL respirou muito fundo boquiaberta e o que leu foi isso: “Aberto das 8 às 19h”. As tripas de Márcia Beatriz, entretanto, assumiram o controle contorcendo-se independentes de sua vontade. “- É nó nas tripa, quer dizer, apendinite.” Não, era dor de barriga mesmo. Descarregou ali a massa imponente sem suportar a emoção do relógio: 15 min. Tentou correr e o máximo que conseguia era disfarçar até alcançar o bar mais próximo “pé imundo”, entrar no mictório e tirar a roupa íntima dos membros inferiores afetados pela enxurrada sólida e sórdida que não serve nem pra misturar nas raízes do jardim. Jogou “a coisa” no lixo, o que não ia introduzir muita distinção ao ambiente e saiu como quem não fez nem quis nada. Posicionada novamente na frente de batalha: 5 min.

- Se chegar a tempo ele é obrigado a me atender! Mas como entrar nesse fedô num lugar que vende comida?

Meia volta volver. Desanimou de esperar o transporte coletivo, envergonhada que estava de sua condição. Voltou a pé na escuridão da noite, guiando-se por vias ignotas e sinais igualmente ignotos sem errar uma esquina. Nunca mais errou o caminho de casa. Porque a casa é o centro da vida de quem a tem.

A propósito, não tinha alergia a sorvete, a causa da descarga de opróbrio. Era a essência de baunilha. Ou melhor, sabor de baunilha falsificado.

Jean Bizzy

Nenhum comentário: