sexta-feira, 13 de julho de 2007

Prefácio for Sílvia

Este texto não tem a pretensão de acrescentar algo novo ao pensamento científico e filosófico, sobre esta monografia, ou ao seu conteúdo específico. O objetivo aqui é empreender uma reflexão de cunho sociológico sobre o significado da ética e da moral.

Segundo o minidicionário Silveira Bueno ética é “parte da filosofia que estuda os deveres do homem para com Deus e a sociedade; deontologia; ciência da moral” e ético “adjetivo relativo aos costumes”. Por sua vez, moral é “parte da filosofia que trata dos costumes ou dos deveres do homem; conclusão moral que se tira de uma obra, de um fato, etc.; s.m, conjunto de nossas faculdades morais; o que há de moralidade em qualquer coisa; adj. Relativo aos bons costumes; relativo ao domínio espiritual (em oposição a físico ou material).”1

Evitemos confundir moral e costumes. Não tenho ao alcance um dicionário de sociologia, contudo vamos ao recurso do exemplo: o direito de primogenitura, que estipula a transmissão da herança ao filho mais velho, a escarradeira na sala de visitas, como objeto de uso e decoração, comer frango com as mãos, dividir a sociedade em nobres e plebeus, usar o teste de DNA para comprovar a paternidade de uma criança, dar a mão após um mês, beijar só depois de dois meses de namoro. Nem tampouco atribuir a moral o que é um valor:

“Os valores são(...)representações mentais, representações do que é bom, desejável, ideal, de como as coisas deveriam ser ou procurar ser; são preferências, inclinações, disposições para um estado considerado desejável.

São nossos valores, mais que nossos conhecimentos, que fazem de nós o que somos. Pois nossos conhecimentos quer sejam fatuais, conceituais ou teóricos, ganham seu sentido através de nossos valores(...).”2

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Entretanto, valores e costumes estão intimamente ligados até a indistinção. Um valor pode ser moral, valores têm conseqüências morais e costumes são investimentos emocionais que marcam identidades pessoais e grupais a ponto de causar humilhação, um sofrimento moral, caso sejam violados. O valor pode ser a obtenção de bens independente de meios e um costume, como a pena de morte ou o suicídio em nome da honra, pode ser contrário a moral. Entretanto, em uma sociedade x, é imoral manter o autor de determinado crime vivo e em sociedade y, covardia é não matar-se após sofrer uma derrota. Valores mudam, costumes igualmente. Logo, no campo da moral é possível distinguir o que há de eterno e relativo?

Como religiosa diria que os Dez Mandamentos são base de toda moralidade e que, na medida que progredimos, amplia-se nosso senso moral, ou seja, as noções que temos de certo e errado, de bem e mal, e que aumenta, paralelamente, nossa liberdade e responsabilidade. Notem, nosso conhecimento é instável, não o que há para conhecer. As leis de Deus são imutáveis e perfeitas. As ações equivocadas partem do propósito em burlar a lei ou da ignorância em relação a ela. Como cientista social, este é o pretexto para um estudo comparativo cuja hipótese é a existência de princípios de conduta comuns a todas as culturas, o que seria bastante ousado da parte de qualquer pesquisador. Para não matar a questão nesta impossibilidade, antropologia. Geertz em seu texto “A transição para a humanidade” demonstra que a condição humana foi alcançada gradativamente, sem que houvesse um salto, um ponto crítico, no qual o tamanho do cérebro finalmente permitiu a criação da cultura e da vida social. Está em jogo a propriedade do pensamento, a ferramenta evolutiva de adaptação a tornar o animal fisicamente mais frágil, no praticamente mais forte. O pensamento é um ciclo aberto com capacidade de autocriação, pode ser fechado em si mesmo, mas esta não é a condição de sua existência, tanto quanto não é da história humana. A cultura não é apenas uma forma de adaptação ao meio, determinismo geográfico, senão haveria sempre a mesma cultura no mesmo ambiente, não haveria esquimós e lapões.

Este é o nó, a convergência das aflições. A moral não precisa da atividade intelectual para ser relativizada, já é relativa na sociedade. O cuidado a ser tomado é com a pulverização da noção de cultura, através da individualização do conceito de diversidade. Em alguns escritos de educação encontramos a barreira de classe na escola reduzindo a reprodução da herança recebida dos pais a ponto de não sabermos o que é devido a diferenças de personalidade, caráter individual e o que é devido à desigualdade de origem social, caráter estrutural. Estudos de trajetória escolar tratam das exceções, daqueles que se sobressaem apesar das dificuldades decorrentes da origem social. Afinal, qual a afinidade social e sociológica entre estas pessoas além de sua localização desfavorável e de sua crença no mérito e no esforço próprio, na democracia social para vencer?

A linguagem é um bom instrumento para transitar do individual ao social, sem cair no estruturalismo das marionetes ou no individualismo ingênuo, da liberdade total. Entretanto, melhor (e ligado a ela) que a lingüística no momento, será o conceito de representações coletivas de Mauss e Durkheim. Seu argumento é de que as categorias do entendimento, deduzir, induzir, definir não se devem somente a psicologia individual, são resultado de gênese social, pelo desenvolvimento da função classificadora. Esta consiste em agrupar animais, plantas, pessoas e circunstâncias em conjuntos ordenados por coordenação e subordinação, estabelecendo hierarquias do maior para o menor elemento, demarcando linhas, fronteiras nítidas por afinidade e oposição. A partir das formas primitivas de classificação encontradas em povos australianos demonstram como, apesar das peculiaridades de cada um, todos elaboraram classificações em torno dos totens pertencentes às metades tribais (fratrias) e seus respectivos clãs. A indistinção e as relações de parentesco e localização entre coisas, circunstâncias e pessoas revelaram o sociocentrismo, as relações sociais servindo de base às relações lógicas das coisas.

“A sociedade não foi simplesmente um modelo segundo o qual o pensamento classificador teria trabalhado; foram seus próprios quadros que serviram de quadros ao sistema. As primeiras categorias lógicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisas foram classes de homens nas quais tais classes foram integradas. Foi porque os homens estavam agrupados e viam-se em pensamento em forma de grupos que agruparam idealmente os outros seres, e as duas maneiras de agrupamento começaram a confundir-se a ponto de se tornar indistintas.”3

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Mais que isso, as classificações analisadas abarcavam o universo, tomando proporções cosmológicas, dividindo as coisas em sagradas e profanas, favoráveis ou desfavoráveis, puras ou impuras, reunidas em um todo, pelo sentimento, obra afetiva. Embora distantes em seus fundamentos, tais classificações são análogas às classificações científicas e ambas destinadas a unificar o conhecimento, a tornar inteligíveis relações entre os seres. Contudo, seu conteúdo emocional é especialmente religioso, e o valor afetivo atribuído às idéias interfere decisivamente nos critérios de aproximação ou afastamento. A citação que farei sintetiza o problema central, posto que tomamos a moral, ou a moralidade, por sistema de classificação dos acontecimentos, das ações, dos sentimentos, coisas e pessoas nos eixos de bem x mal, certo x errado:

“Ora, a emoção é naturalmente refratária à análise ou, ao menos, dificilmente se presta a isto, porque é demasiado complexa. Sobretudo quando é de origem coletiva, desafia o exame crítico e lógico. A pressão exercida pelo grupo social sobre cada um de seus membros não permite que os indivíduos julguem livremente as noções que a própria sociedade elaborou e onde ela pôs alguma coisa de sua personalidade. Por isso, a história da classificação científica é, em última análise, a própria história das etapas no decurso das quais este elemento de afetividade social se enfraqueceu progressivamente, deixando sempre mais o lugar livre ao pensamento refletido dos indivíduos. Mas falta muito para que estas influências longínquas que acabamos de estudar tenham cessado de se fazer sentir em nossos dias.”4

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Se as causas de um costume mudam, ou ele é extinto ou sofre alterações. Partir do pressuposto da moral relativa no tempo, no espaço, nas culturas, não significa subtrair sua autoridade. Não teríamos saído do lugar se não houvesse consenso. Sem consenso não há ação coletiva, social ou política. A unanimidade é burra, mas o consenso é necessário. Há uma distância considerável em aplicar a relatividade no esforço de respeito e convívio pacífico das diferenças e uma justificativa analítica de defesa da opinião própria como verdade integrante da essência do eu, direito individual inabalável, portanto inflexível. Nas emoções religiosas encontramos não só a ponte que põe em comunicação dois textos, mas também o componente moral, o aspecto normativo constituinte da própria sociedade, conforme Durkheim. Este afirma que as origens da religião confundem-se com a origem da sociedade.

“Não existe religião que não seja uma cosmologia ao mesmo tempo em que uma especulação sobre o divino. Se a filosofia e as ciências nasceram da religião, é que a própria religião começou por ocupar o lugar das ciências e da filosofia. Mas o que foi menos notado é que ela não se limitou a enriquecer com um certo número de idéias um espírito humano previamente formado; ela contribuiu também para formá-lo. Os homens não lhe deveram apenas uma notável parcela da matéria de seus conhecimentos, mas também a forma segundo a qual esses conhecimentos são elaborados.

Existe na base de nossos julgamentos, um certo número de noções essenciais que dominam toda a nossa vida intelectual; são aquelas que os filósofos desde Aristóteles, chamam de categorias do entendimento: noções de tempo, de espaço, de gênero, número, causa, substância, personalidade, etc. ...Elas são como quadros rígidos que encerram o pensamento: este parece não poder libertar-se delas sem se destruir... São como a ossatura da inteligência.”5

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Onde há sociedade, há religião, onde há religião, há moral, mas nem tudo que é moral ou envolve moralidade, é religioso. Maquiavel ilustra isso no campo da política, Hobbes no campo do direito, Sílvia Maria no campo profissional (e a ética é um ramo da filosofia). Maquiavel, em seu livro “O Príncipe”, nos ensina a lógica do mal menor ou do menos mal. Não a lógica do bem. É melhor ser amado e respeitado, mas se não puder, seja temido. É melhor ser virtuoso, mas se não puder, aparente virtude. Se um grupo de pessoas ameaça o seu poder e a segurança da população do principado, melhor a morte de poucos, que a morte de muitos. Hobbes com o contrato social demonstra que ao Estado foi concedida, em termos weberianos, “o monopólio do uso da força física”. Seriados americanos abordam com freqüência e abundância estes assuntos nesta zona liminar de sacrifício e exaltação simultânea da lei. Quebrar uma janela, invadir um domicílio, libertar uma refém, grampear um telefone, gravar uma conversa, matar soldados inimigos, fingir ser outra pessoa, violar códigos de entrada e saída, explodir um navio cheio de gente contaminada por uma doença fatal e incurável... Bater em um homem indefeso e amalucado porque cometeu um crime e você é um policial indignado.

À parte o evolucionismo de Mauss e Durkheim, bem como o protesto fervoroso contra a corrupção, está claro, nem sempre é possível optar claramente entre céu e inferno.

O filme GATTACA serve de base para ilustrar esta discussão. Nele, um casal decide gerar seu primeiro filho através de um método pouco convencional: o sexo. Enquanto o normal para a época é encomendar o bebê em um laboratório, no qual são escolhidas as melhores características genéticas do casal para geração da criança e detalhes como cor dos olhos, da pele, textura e cor do cabelo. O menino mal acabou de sair do útero e deram uma probabilidade de 90% para doença cardíaca e outras estatísticas mórbidas, além de uma expectativa de vida de não mais que 30 anos. Ele fazia parte de uma classe de párias sociais aos quais eram reservadas funções consideradas inferiores no mundo do trabalho. E sempre perdia para o irmão mais novo, produzido em laboratório, quando nadavam no mar. Vincent sonhava com as estrelas e sentia-se um estranho na própria casa e com aqueles que deveriam ser sua família. Fazia parte de uma forma de exclusão social gerenciada pelo critério biológico.

Após abandonar os parentes trabalhou como faxineiro (limpou metade dos banheiros do estado...). Encaminhado ao centro de pesquisas espaciais, sentiu que nunca esteve tão perto e simultaneamente tão distante de seu sonho como naquele momento. Os testes de DNA tornaram-se integrantes do currículo nas entrevistas de admissão, embora a lei condenasse a discriminação entre os “filhos da fé” e os cientificamente elaborados. Até que Vincent recebeu uma proposta, corriqueira numa espécie de mercado negro: assumir a identidade de Jerome, um homem de patrimônio genético invejável, praticamente perfeito, no entanto, paralítico. Feito para ser o primeiro ganhou medalha de prata, não suportava a própria vida. Assim Vincent obteve um cargo na estação espacial. Utilizando o sangue, a urina e os resíduos corporais de Jerome nos exames feitos constantemente nos funcionários, na tentativa de evitar fraudes.

Ora, Vincent fez uma coisa duplamente feia: falsidade ideológica em busca da satisfação dos próprios interesses. E o que era mais terrível então, isto ou a eugenia daquela sociedade que, tendo escolha sobre a constituição genética humana, condenava as pessoas a partir de probabilidades (não certezas)? Ele representava todos os sonhos proibidos de seus semelhantes. Como mudar, alcançar uma verdade sem anular a outra? E de que forma distinguir o momento no qual uma verdade maior suplanta e faz com que outra se torne menor sem cair em cinismo, desculpismo ou na transgressão pura e simples?

Fernanda Flávia Martins Ferreira


1 SILVEIRA BUENO, Francisco. Minidicionário da língua portuguesa. 6ªEd. São Paulo: Lisa, 1992.

2 LAVILLE, Christian & DIONNE, Jean. A Construção do Saber. Editora UFMG e ArTmed. Tradução de Heloísa Monteiro e Francisco Settineri. Adaptação de Lana Mara Siman. Belo Horizonte- MG, 1999.

3 DURKHEIM, Émile; MAUSS, Marcel. “Algumas formas primitivas de classificação”. In: Ensaios de sociologia. 2ªEd. Trad. Luiz João Gaio e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 451. Obs.: Texto escrito em 1903.

4 Id, 455.

5 DURKEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura [et al]. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.211.

Obs.: prefácio para a monografia de Sílvia Maria sobre a Ética das Verdades de Badiou.

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