segunda-feira, 9 de julho de 2007

A Briga das Panelas

Samira:

Você aí! Elite! Como pode dominar desta forma? Este capitalismo continua selvagem, as pessoas perderam completamente a noção de ética. Estamos submetidos a um poder que toma decisões arbitrárias controlando nossos corpos e mentes dóceis. Sim, a mídia não é um quarto poder, é muito mais, é aquele que interliga os três tradicionais, executivo, legislativo e judiciário... E a elite oculta-se, fluida, volátil, sorrateira. A resposta para “quem são essas pessoas?”, pode ser parcialmente satisfeita com vários nomes... E digamos, não parece simplório? Você são os ricos Elite. Morra Elite! (apontava uma panela pequena, porém funda, estreita e comprida, a tampa cinza, o mato das cidades é o concreto...).

(dá dois passos, esbarra em algo). Banco ordinário! (no chão, a pipoqueira). Fui até você, paguei minha dívida e ao reclamar meu direito de novamente ter uma conta levei três meses tentando, de funcionário em funcionário. Eu sabia que não haveria comunicação entre eles, por isso um dia, eu conseguiria. Vou te roubar milhões e construir uma super cozinha.

(imaginando a super cozinha, olha para a geladeira.) Polícia! E quando fui reclamar meu direito à privacidade, denunciar que instalaram uma escuta para me vigiar no estágio?! Tratou-me como louca, como se eu tivesse mania de perseguição, não fez nada, nem para verificar minhas suspeitas! Escutas dentro da polícia já!

E esse aí? Desprezível... (uma enorme peneira de arroz com furinhos irrisórios) Concurso! Colocou Foucault, Lacan e Badiou no edital. Que absurdo... Pelo menos tirou o Badiou depois, ficou mais coerente. Não acredito que são os mesmos autores nos quais acredito usados para dizer que as pessoas só obedecem às normas por medo de punição, que a base da justiça é a repressão e o castigo! Verme asqueroso transforma em pedra o que toca...

E a Justiça terapêutica, aqui do meu lado! Dizendo que pra eu me curar tenho que me comportar assim ou assado? E os meus sentimentos, não contam? Nunca fui tão usada e humilhada em toda minha vida! (eram a vassoura, a pá, a lixeira e os talheres que escutavam).

(uma estrutura de metal ardente ao sol das 10, com umas barras na frente, vidros separados de outros vidros, parecendo janela...) Estado seu hipócrita!!! Até nos chás que eu tomo o senhor quer mandar, chá de erva X é antidepressivo. E na parte de órgãos públicos do catálogo telefônico!

Nefertiti:

Espere um pouco (abre os olhos), é você... Mais jovem, menos gordinha, mas é você. (vê as portas do armário abertas, lá dentro, inúmeras vasilhas de plástico, pratos, copos, uns instrumentos estranhos que ela não conhecia o uso, misturados com pacotes de arroz, feijão, macarrão, café, farinha, fubá...).

Você sua desequilibrada, burra, idiota, imbecil, sempre acreditando nas pessoas! Lembra de Dogville? É presunção esperar sempre o melhor das pessoas! Depois de dois anos você descobre que tudo que te aconteceu é porque os chefes perceberam sua capacidade de liderança e tiveram medo de você. Os políticos profissionais não gostam de verdadeiros chefes, já disse Weber. Contudo, seus efeitos retardados não ficam somente aí não... (não se enganem, está olhando na direção do suporte do coador de café, com certeza).

(Eu acho que é o jarro de suco) Você morre de medo de ficar igual a sua mãe, não é? Você já é como ela, lembra?

“Estava na sala sentada na cadeira mais distante do televisor e mais próxima da porta. Minha mãe sentada perto do telefone, no sofá, com as pernas esticadas sobre um banquinho, como de costume, fazendo seu crochê.

- Faço duas blusas ao mesmo tempo para não enjoar. Sabe o que eu vou fazer depois? Aquela blusa que começa pela gola é tão bonita, não é?

- É.

- Sabia mãe, que eu estou vivendo os dois lados da minha vida? O bom e o ruim. O dilema e o drama, a paixão e o poema. Sabia que é a situação mais irônica que já vivi até hoje? Sabe não. É um muro, uma fortaleza. À prova de qualquer problema, qualquer coisa que te incomode. Assuntos sérios não ultrapassam o nível plúmbeo de suas pilhérias. Não se interessa pelo que eu penso, sinto ou faço. Somos duas estranhas morando na mesma casa. Sugando a carne pelo mesmo sangue. Por Deus, somos tão parecidas! E nos damos tão bem!

- Não vou colocar manga comprida não, com manga comprida a gente usa pouco...

- Ei mãe, presta atenção, cala a boca! Não vê que estou falando com você?! Gri-tan-do. Não, ela não quer saber. Só estava pensando...”

Quem não escuta quem?!

É tão orgulhosa, se acha tão melhor que os outros que se dá ao luxo de não seguir as regras. Bem feito! Fica aí sozinha, parece uma árvore no meio da savana. Julga que se parece com uns personagens de desenho animado, entretanto só fala demais mesmo... (ei, as taças de cristal ficam bem aqui...).

Você diz que sua mãe não presta atenção em nada do que você gosta ou desgosta, (dica: o arroz e o feijão não se misturam) diz aí cinco coisas que ela gosta ou desgosta. Anda, quero ouvir!

Eu, eu, eu!

**

Lá fora, estrondos terríveis anunciam tempestade. É um inferno, é o fim. O vento ultrapassa as nuvens contorcendo-se no ar. Barulhos tantos que se perdem indefinidos na orquestra ininterrupta.

Era de manhã. Nefertiti preparou um suco de laranja para Samira. Sentadas na mesa drummoniana comiam em silêncio. Na casa de Nefertiti todos estavam em seus lugares. Tocava uma música do Cd, talvez aquela... “Decepar a cana, recolher a garapa da cana, tirar da cana a doçura do mel...”. Entreolharam-se longamente. “Vamos fazer um bolo?”, perguntou Samira, quebrando o enlevo. “Vamos”. Empenhadas em estar uma dentro da outra sempre, tinham uma relação quase muda.

Samira pega o livro de receitas em uma gaveta, (ansiedade) Nefertiti pega os ingredientes, (impaciência) Nefertiti lê a receita, (nervosismo) Samira pega os vasilhames, (exaltação) Nefertiti mistura, (desespero) Samira acrescenta, (agonia) Nefertiti unta a fôrma, (tristeza) Samira liga o forno, (revolta) Nefertiti espalha a massa, (ira) Samira coloca para assar.

E assim começou.

**

Arro(u)t(b)os adentro, enquanto Samira atira as panelas pela janela, Nefertiti joga todo conteúdo do armário no chão. Num movimento brusco Nefertiti lança uma pilha de pratos como um bumerangue em direção à porta e Samira, simultaneamente, corre ao fogão em busca da última panela.

- Não! Nefertiti corre.

- O quê?

As duas se encontram quase tão próximas uma da outra quanto adesivo em vidro de carro. E só o desejo do corpo poderia satisfazer precária e sumariamente os desejos do espírito... Contudo, lembraram que espírito e palavra são parentes. E ainda narizes se tocando:

- As panelas não são suas. Samira, ofegante.

- Nem suas. Não há motivos para brigar, portanto. Nefertiti, sussurrando.

- Sim, o conflito é das panelas. Samira

- E nós somos a comida. Nefertiti

- Mas... Nós usamos as panelas... Samira

- Sinal de que podemos controla-las. Nefertiti

- Às vezes me sinto uma panela. Samira

- Como marionete? Nefertiti

- Não, quente mesmo. Marionetes não fervem, nem se transformam no fogão. Samira

- É, mas são instrumentos. Nefertiti

- Eles incorporam o conhecimento técnico de modo tradicional, não inovador. Samira

- Você não é igual à sua mãe, apenas parecidinha, e precisa de alguém que goste de você como é. Nefertiti

- A revolta contra os outros é a revolta consigo mesma, porque você é tão igual ao objeto de sua revolta que o compreende profundamente. Samira

- A revolta contra si mesma é a revolta contra os outros, pois os compreende tão pouco que não consegue ver a si mesma, em sua nudez. Nefertiti

- O bolo está pronto. Samira

- Ó família, vocês estão aí! Nefertiti

- A polícia e os vizinhos também. Mãe

- Samira? É você? Nefertiti volta-se novamente para a amiga.

- Nefertiti... Era você...

- A gente se confundiu?

- Literalmente.

- Calma mãe, nós só trocamos de alma por alguns instantes.

Poderia ser “na cama com amiga”, pois no início estávamos dormindo. Porém... Uma vez no tempo... Desmesurado não. Essa é a história de duas amigas que passaram os melhores momentos da amizade na cozinha, seu templo sagrado.

Jean Bizzy
17/10/2005

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