segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Reflexões terapêuticas...

Muitas vezes me abstenho nas conversações sobre política porque sou uma pessoa de esquerda, mas não sou dona da verdade. Isso tem muito mais a ver com a filosofia “é melhor ser feliz que ter razão” do que com ignorância (no sentido estrito, falta de conhecimento). E sou de esquerda desde a adolescência, por reflexão, muito mais que por influência desta ou daquela pessoa, por causa desta ou daquela notícia ou movimento.
Sou favorável a esquerda porque nela vejo a possibilidade de discutir, propor, mudar e alcançar uma vida melhor para a maior parte da humanidade, que é pobre e trabalhadora, de modo que é muito mais útil e leal a esta parcela populacional do que a conservação da ordem capitalista, excludente e super exploratória defendida em geral pela direita. Isto sem tocar nos conteúdos racistas, machistas e homofóbicos que são empregados para manter e justificar esta ordem ou das “verdades” absolutas de caráter econômico aparentemente científicas ou imparciais, ou ainda, das argumentações que se revestem do sagrado, de caráter religioso.
Então, conversar com pessoas inflexíveis, que se julgam claramente superiores, mais inteligentes ou melhores que eu, deixa a impressão antidemocrática da burrice, daquele que não sabe e nem quer saber um ponto de vista diferente do seu (agora assim, da ignorância em sentido amplo, de querer continuar no mesmo lugar). Isto passa bem longe, portanto, de me convencer de qualquer falha ou lapso em minha própria perspectiva, algo que só pode ser alcançado em uma conversa franca, de igual para igual, com argumentos que venham da própria pessoa, e não de vídeos do YouTube cheios de afirmações sem fundamento, citações sem fontes, relatos desconexos e campanhas de difamação pessoal que não conseguem ter a elegância (ou inteligência?) de argumentar contra as ideias do Outro. Essas coisas parecem basear-se no fundamento de que um lado da história é totalmente bom e o outro, totalmente mau. Qualquer terapeuta ou pessoa razoável sabe que esta redução/ simplificação não corresponde à realidade e sim a um distúrbio neurótico. Poucos seres deste mundo foram chamados de santos e muitos deles tiveram em suas biografias sua parcela de pecado e inferno pessoal. Interpretar os fatos de maneira moralista, estabelecendo uma oposição similar a dos desenhos animados infantis, demonstra claramente que a idade mental frequentemente não acompanha a idade cronológica.
Esses elementos conduzem a pensar nos motivos pelos quais me tornei Alquimista. Uma pessoa não faz terapia se estiver plenamente satisfeita consigo mesma e com sua vida. Para se dispor à terapia é necessário haver pelo menos um problema, um incômodo interior para o qual se deseja descobrir a causa e encontrar a solução. E é difícil, pois após descobrir o que incomoda e por que incomoda (autoconhecimento) é preciso decidir o que fazer. Decidir aqui é um ato solitário, que requer responsabilidade sobre as consequências e este ato pode ser compreendido na encruzilhada entre permanecer onde está ou promover uma mudança, uma transformação. Mudar, por sua vez, requer coragem. Então, a permanência no mesmo lugar, a conservação da ordem aparece como uma violação do trabalho terapêutico, assim como a conservação da ordem social viola meu senso de justiça. Porém, enquanto ao paciente dou meu respeito a seu livre-arbítrio, ao ato da terapia dou meu amor pela transformação. Este ou aquele indivíduo pode decidir se conservar, mas não me dou ao luxo de trabalhar pela manutenção dos problemas sem solução.
Dito isso, não vejo como uma Nova Era pode surgir sem uma Nova Consciência. A transformação social está intimamente ligada à transformação individual. São indivíduos que dão respaldo a sistemas políticos e econômicos, nenhum governo se faz sozinho. Sem o descentramento do ego, sem a libertação humana do egoísmo em todas as suas formas não haverá ascensão avassaladora da igualdade, da fraternidade, da liberdade e da solidariedade UNIVERSAIS. O mundo continuará constituído pela exploração dos mais fortes sobre os mais fracos humanos e não-humanos. As sociedades continuarão falhas e decadentes na manutenção dos laços sociais que evitam a depressão, a doença e o suicídio.
Assim, a luta pela manutenção de privilégios e pela concessão de direitos apenas a quem possa pagar, para privatizar a saúde, a educação, a previdência social e todas as riquezas que deveriam ser do povo, não se coaduna com o amor universal, nem com a compaixão, pois argumentar que alguém é pobre porque merece, ou porque não tem méritos, além de cruel é também descartar o fato básico de que para desenvolver-se as pessoas precisam ter oportunidades que lhes são sistematicamente negadas, geração após geração. Não é gratuito que a pobreza tenha cor e sexo, ou, dito de outro modo, seja negra, mestiça, indígena e feminina. Logo, não se trata de problema meramente individual. Essas afirmações distorcidas do ponto de vista sociológico soam mais estranhas quando se considera que o pressuposto das oportunidades para o desenvolvimento humano é reconhecido por um filósofo liberal, John Stuart Mill.
Qualquer sistema ou ideologia que tire do Outro (como alguém diferente de você ou dos seus padrões e princípios) sua capacidade de ser contraria a universalidade amorosa, torna o amor egoísta, condicional e medíocre. Exatamente como tem sido a humanidade há séculos. Qualquer ideologia que se baseie em mentiras para se tornar verdade é como tem sido várias ideologias na humanidade há séculos.
Qualquer terapia que não ajude o indivíduo a transformar a si mesmo, a se tornar mais amoroso consigo e com os outros, a ter coragem para realizar mudanças necessárias à sua felicidade, é uma terapia medíocre, ou tão paliativa e imediata quanto um comprimido para dor de cabeça.
“Os problemas, portanto, nos compelem a um estado de soledade e orfandade absoluta, onde nos sentimos abandonados inclusive pela natureza e onde somos obrigados a nos tornar conscientes. Não temos outra via de saída, e somos forçados a substituir nossa confiança nos acontecimentos naturais por decisões e soluções conscientes. Cada problema, portanto, implica a possibilidade de ampliar a consciência, mas também a necessidade de nos desprendermos de qualquer traço de infantilismo e de confiança inconsciente na natureza. Esta necessidade é um fato psíquico de tal monta que constitui um dos ensinamentos simbólicos mais essenciais da religião cristã. É o sacrifício do homem puramente natural, do ser inconsciente natural, cuja tragédia começou com o ato de comer a maçã no paraíso. A queda do homem segundo a bíblia nos apresenta o despontar da consciência como uma maldição. E é assim que vemos qualquer problema que nos obriga a uma consciência maior e nos afasta mais ainda do paraíso de nossa infantilidade inconsciente.  Cada um de nós espontaneamente evita encarar seus problemas, enquanto possível; não se deve mencioná-los, ou melhor ainda, nega-se sua existência. Queremos que nossa vida seja simples, segura e tranquila, e por isto os problemas são tabu. Queremos certezas e não dúvidas; queremos resultados e não experimentos, sem entretanto nos darmos conta de que as certezas só podem surgir através da dúvida, e os resultados através do experimento. Assim, a negação artificial dos problemas não gera a convicção; pelo contrário, para obtermos certeza e claridade, precisamos de uma consciência mais ampla e superior.” (JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Trad. Mateus Ramalho Rocha. 10ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2013. Cap. XV, p. 344-345)

Fernanda Flávia Martins Ferreira

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