sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Quem a gente pensa que é

A religião é excludente. A religião é um grupo de pessoas que se julga melhor porque acredita em x, y, z e todas as outras pessoas não. Por que afinal tudo que a religião traz de bom para os fiéis torna-se tudo de ruim quando a questão é lidar com a diferença? Quando a questão é lidar com quem pensa diferente ou com quem não é da mesma religião? Porque a religião é excludente. E a exclusão pode não resultar em nenhum conflito quando estão todos em seus devidos lugares, mas é potencial quando se trata de manter os fiéis na canga, quando se trata de vencer no mercado religioso. Até mesmo para os espíritas que se dizem não-proselitistas.
Este texto começou numa conversa inocente em que me vi diante da pequena, mas nem por isso inocente, ilusão dos espíritas ao se acharem cristãos. Ora, os espíritas não são cristãos, não acreditam que Jesus é o redentor. Ora, os espíritas não são cristãos, não acreditam que Jesus é o Deus vivo ou a presença de Deus na Terra. Claro, mas, puro detalhe, os espíritas kardecistas brasileiros construíram toda sua religiosidade, todas as suas práticas religiosas sobre os ensinamentos de Jesus, os evangelhos. O judaísmo não é todo baseado nos ensinamentos de Jesus, o islamismo também não. Conceitualmente falando, vale a pena para um sociólogo sustentar que os espíritas não fazem parte da parcela cristã da sociedade brasileira? Creio que não. Mas para a teologia católica, para a teologia calvinista, etc. ó sim, faz muito sentido. Água e óleo não se misturam. Contudo, parece-me que dizer que os espíritas não são cristãos, apesar de se identificarem como tal e de professarem os ensinamentos de Jesus, é uma arbitrariedade próxima a dizer que o budismo não é religião porque os budistas não acreditam em Deus.
Outro dia, lia um jornalzinho de igreja tal, falando sobre o Sudão. Tudo ia bem até ler mais ou menos que o país já teve maioria cristã, mas que hoje os cristãos vivem espremidos entre os muçulmanos e os ignorantes “apesar de bem intencionados” “cultos demoníacos” (as religiões tribais). Em seguida reclama-se que o Estado é islâmico, baseado na sharia (parte do alcorão) e que há pouco espaço para os cultos cristãos. Além disso as tribos ficam matando umas às outras. Pobre do Sudão, vamos “orar” por ele. Ah! Então quer dizer que se o Estado fosse cristão estaria bom? Ah! Quer dizer que os que “cultuam demônios” são bem intencionados, mas estão errados? Ah! Quer dizer que os muçulmanos, apesar de reprimirem os cristãos, têm um baita de um desconto no preconceito porque são monoteístas e não invocam espíritos? Ah! Quer dizer que os cristãos devem ir lá, converter os adeptos dos “cultos demoníacos” para Jesus porque senão eles vão para o inferno? Engraçado, pensei que Deus não fosse propriedade de ninguém.
Foi exatamente esse argumento que gerou o assassinato de mais da metade da população indígena da América Latina na época da colonização e as missões jesuíticas, que pelo menos mantiveram alguns índios vivos. “Converter para salvar”. Não seria melhor ter a Igreja ao lado da Taba e deixar que as pessoas escolhessem uma das duas?
Como se não bastasse, o intercâmbio musical entre a cliente e a manicure foi contaminado: a manicure entrega os CD’s para a cliente sem a capa. Imagina a cliente, provavelmente com perspicácia, que é medo. Medo de que a cliente possa fazer alguma “macumba”, pois é espírita. Contudo, o interessante é que a cliente foi espírita kardecista, e os espíritas kardecistas “não fazem macumbas” nem para o bem, nem para o mal, pois segundo sua crença “respeitam a vontade de Deus e dos seres humanos”. Apesar disto, mesmo que a cliente fosse da umbanda ou do candomblé não praticaria nenhuma mágica desejando bem ou mal para a manicure, primeiro por não desejar-lhe mal, segundo por ver na manicure uma descrente. E no final das contas parece-lhe que nem mesmo há razão para tamanha prevenção, tamanho preconceito, já que a magia negra (a que se dá o poder de desejar o mal para alguém) é própria apenas de um pequeno grupo, chamado quimbanda. De qualquer jeito, acho que é hora de dar um fim ao intercâmbio, não dá para sofrer preconceito voluntariamente.
Os religiosos defendem suas respectivas religiões. Como boa liberal, digo que está certo, eles têm esse direito –desde que não se matem por isso, nem obriguem ninguém a crer junto com eles, nem humilhem alguém por não crer junto com eles... (Quando isso acontecerá???).Todavia, também como boa liberal, defendo outra coisa que julgo seria bem melhor para toda a humanidade: Abaixo a religião. Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A religião nunca foi plural, é inverossímil esperar que no futuro seja.
Essas histórias só ilustram alguns motivos para indignação. A revolta portanto, surge do fato de que todo o preconceito, todas as atrocidades cometidas em nome de Deus, de Jesus, da bíblia... Nascem simultaneamente da ignorância e desse “achar-se melhor que o Outro” ou achar-se o “dono da verdade”. Talvez só varie o tipo de massacre, ou ideológico ou físico, ou qualquer outra coisa muito bem intencionada que se possa inventar. Eu não pertenço mais à religião alguma pois não sou melhor que ninguém por causa de Cristo, Confúcio, Buda, Moisés ou Maomé ou qualquer outro adjetivo laico, cultural ou religioso. Mas a gente sempre pensa que é.